Uma equipe formada por pesquisadores da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) foi recebida no Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) para apresentação de projetos que envolvem a promoção da educação para pessoas privadas de liberdade do sistema prisional.
Na oportunidade, o presidente do TJMA, desembargador Paulo Velten, conheceu o projeto “Outra Visão”, que é uma ação de extensão da Universidade Estadual do Maranhão, em colaboração com pesquisadores da University of Westminster (Inglaterra) e da Bard Prison Initiative (Estados Unidos), com financiamento da Open Society University Network e apoio da 2ª Vara de Execuções Penais de São Luís.
Coordenado pela professora doutora em Antropologia, Karina Biondi – que se desenvolve na Central Integrada de Alternativas penais e Inclusão Social (CIAPIS), oferece capacitação a pessoas privadas de liberdade (em regime aberto e semiaberto) para a produção e sistematização do conhecimento que têm sobre o universo prisional, promovendo sua inserção em debates públicos e científicos e incentivando-as a continuar seus estudos em ensino superior.
A ação se alinha à Convict Criminology, um movimento internacional – do qual os colaboradores estrangeiros fazem parte – que promove a produção de conhecimento por (ex) prisioneiros. “De acordo com essa perspectiva, ninguém melhor do que as pessoas que viveram a experiência prisional de perto ou na própria pele para falar sobre ela, para analisar a questão prisional, para, enfim, produzir conhecimento sobre crime e punição”, explica Karina Biondi.
Biondi explica que o projeto teve início em 2019, foi interrompido pela pandemia da Covid-19 e, atualmente, está retomando os trabalhos para fornecer subsídios para promoção do ensino nas unidades prisionais. “O projeto trabalha para que pessoas que viveram a experiência prisional consigam situar essa experiência em um debate público e acadêmico. Porque elas sabem muito sobre prisão, elas viveram, às vezes, anos dentro do sistema prisional, mas falta essa essa habilidade de conseguir situar isso em uma discussão mais ampla”, disse a professora.
Como funciona?
Além de estimular o pensamento crítico e a autonomia intelectual das pessoas privadas de liberdade, o projeto “Outra Visão” trabalha para promover a reflexão sobre a posição da prisão e da/o apenada/o em relação à sociedade, oferecendo novos olhares acerca do mundo atual.
Para tanto, oferece cursos de Formação Social, Introdução às Ciências Sociais e Introdução à Criminologia, além de uma Oficina de Escrita Etnográfica. Nessa oficina, as pessoas privadas de liberdade têm a oportunidade de realizar suas próprias análises sobre o seu cotidiano, presente ou passado, e são acompanhadas e assistidas pelas alunas da UEMA. Ao fim de cada curso, entregam-se certificados emitidos pela UEMA.
Com o fim da oficina de escrita, os textos produzidos são editados para compor um livro a ser publicado. Nesse ponto, a intenção é que as pessoas em privação de liberdade entrem formalmente no debate público e acadêmico sobre prisão, crime e punição.
Até agora, o projeto teve dois importantes desdobramentos. O primeiro é que, ao longo das atividades, alguns alunos buscaram informações sobre como retornar aos estudos formais. O segundo desdobramento é que a UEMA passará a oferecer cursos de graduação para pessoas privadas de liberdade, o que configurará como a primeira experiência de ensino superior presencial para apenados no Brasil.
Parceria com a Inglaterra
A partir do conhecimento da Dra. Karina Bondi sobre um projeto desenvolvido no mestrado de Criminologia da Universidade de Westminster, coordenado pelo Dr. Phd. Sacha Darke e co-coordenado pelo Dr. Andreas Aresti, que nasceu a parceria com a universidade maranhense.
O Dr. Sacha Darke, juntamente com o Dr. Andreas Aresti, coordena um esquema de orientação acadêmica para prisioneiros que estudam direito e ciências sociais, e programas de Criminologia para condenados nas penitenciárias de Pentonville, Grendon e Coldingley, que envolvem colaboração pesquisa e aprendizagem entre alunos dentro e fora da prisão.
O professor Darke esclarece que o objetivo da visita ao Maranhão é consolidar os vínculos com a UEMA, e por meio da universidade, com demais instituições com interesses em comum, para desenvolver educação superior dentro do sistema penitenciário e também com egressos(as) posteriormente.
“A ideia de todos esses projetos é para mantermos alunos da universidade, que não tem experiência de prisão, estudando com detentos e detentas, levando alunos para dentro do sistema para estudar junto como nossos alunos e alunas, como já fazemos na Inglaterra”, disse o P.h.D.
Para aplicar a ideia do projeto nos sistemas penitenciários brasileiros, o professor Sacha Darke explicou que são necessárias adaptações. “Estamos aprendendo juntos. Mas, o que está acontecendo na Inglaterra precisa ser adaptado para a realidade do Brasil. Estamos estudando como os projetos podem andar juntos”, concluiu o professor.
Apoio da justiça
Atualmente, o projeto “Outra Visão” conta com o apoio da 2ª Vara de Execuções Penais (2ª VEP), liderada pelo juiz Fernando Mendonça. “É interessante que se viabilize a implantação desse projeto, uma vez que, o nosso sistema penitenciário deu uma mudança muito grande para melhor”, afirmou o juiz.
O magistrado explicou que, para participação do projeto, o sistema prisional seleciona, a partir de alguns critérios, como a disponibilidade da pessoa para aceitar e participar dessa formação. “Essa formação tem um propósito de oferecer os rudimentos de uma pesquisa científica. E ela parte do princípio de que as pessoas privadas de liberdade, ninguém melhor do que elas conhecem empiricamente a vivência do carcére”, esclareceu Mendonça.
O presidente do TJMA, desembargador Paulo Velten afirmou que “é uma satisfação receber pesquisadores de uma universidade inglesa, como a universidade de Westminster, que propõe pesquisas importantes sobre o nosso sistema prisional, com propostas de qualificação dos internos e internas, voltados à educação”.
Paulo Velten ressaltou que a iniciativa não deixa de ser um reconhecimento do trabalho e avanços que estão sendo feitos no sistema prisional. “Uma vez que vislumbramos um ambiente propício para pesquisas e estudos acadêmicos, quando antes isso seria impossível”, afirmou o presidente.
Velten acrescentou, também, que o TJMA, por meio da sua Escola Superior da Magistratura, está aberto para parcerias com as instituições de ensino, por meio da UEMA. “A ação é motivo de esperança de que no futuro, nasçam parcerias produtivas para a formação de todas as partes, sejam elas apenados(as), acadêmicos e magistrados(as)”, frisou.
Também participaram da reunião, a desembargadora Sônia Amaral (vice-diretora da Escola Superior da Magistratura – Esmam); o juiz auxiliar da Presidência, Nilo Ribeiro Filho; a pro-reitora de Graduação da UEMA, professora Dra. Monica Piccolo e o diretor de segurança institucional, coronel Alexandre Magno.
Experiência acadêmica
“É muito importante tornar possível esse projetos, porque um dia eu estive lá e estudei sozinho”, revela o professor Andreas Aresti, que é um egresso do sistema penitenciário da Inglaterra.
O professor Andreas Aresti contou que quando estava encarcerado, não havia nenhum desses projetos na Inglaterra, e, por iniciativa própria, estudava dentro da cela da prisão. “Naquela época, eu gostaria que houvesse esses projetos, porque (você sabe) quando tem mais pessoas ao seu redor, que estão fazendo a mesma coisa, isso motiva você, deixa você mais comprometido. Você está em uma sala com outras pessoas que estão discutindo as mesmas coisas. Então, para mim, estudar na prisão foi muito solitário. Por isso amo esses projetos. É por isso que para mim é tão incrível estar ajudando outras pessoas e ter esses projetos para elas”, expressou o professor.
Andreas Aresti disse que se impressionou com o trabalho e dedicação das pessoas que atuam nas ações da 2ª VEP de São Luís. “Visitamos a 2ª VEP e o Dr. Fernando Mendonça nos contou sobre todos os programas que eles fazem e achei realmente impressionante. Eles têm psicóloga, assistente social e uma equipe multidisciplinar formada por pessoas que são apaixonadas por fazer mudanças, nem sempre vejo isso no Reino Unido”, confessou Aresti.
Sobre o trabalho feito na Inglaterra, Aresti compartilhou sobre o que é mais impactante. “Sabe o que é realmente interessante? Muitas pessoas que fazem criminologia que estão na prisão e estudam criminologia quando saem, usam isso de forma positiva. Eles passam a trabalhar para entidades beneficentes e Organizações Não Governamentais para que ajudem outros semelhantes a eles”, comentou.
Também presente na visita institucional, a estudante do mestrado em Criminologia da Universidade de Westminster, Ella Walsh, mencionou que está na universidade há sete anos, estudando a área de criminologia, e na graduação começou a se envolver nos projetos prisionais em Pentonville, Coldingley, em Grendon, por um ano antes da pandemia.
Depois da pandemia, continuou como aluna de mestrado, envolvendo-se em projetos em Coldingley. “Assim, trabalhamos com encarcerados que possuem graduação, mestrado e até doutorado, e estudamos com eles em colaboração com eles. Eles nos ensinam o conhecimento de sua experiência que não sabemos, e nós os ajudamos”, explicou.
Ella diz que os projetos na Inglaterra evoluíram muito e que,atualmente, aulas de mestrado ocorrem dentro da unidade prisional. “Então, agora o programa de mestrado vai para dentro da prisão, as pessoas privadas de liberdade estão no curso conosco, nós vamos uma vez por mês, e estamos fazendo avaliações juntos, aprendemos juntos e estamos escrevendo”, pontuou a mestranda.
Sobre os desafios, Ella Walsh afirmou que ainda há um longo caminho a percorrer com a educação nas unidades prisionais. “Mas ser capaz de apoiar, trabalhar e colaborar com os detentos que estão cursando o ensino superior, dá esperança à ideia de que, no futuro, coletivamente seremos capazes de elevar o nível de educação semelhante nas prisões por meio do trabalho que desenvolvemos”, concluiu Walsh.